O presidente João Goulart atendeu o telefone. Era manhã de 31 de
março e ele estava no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Do
outro lado da linha, falava o senador Arthur Virgílio. “Presidente, o
Almino (Affonso, líder do PTB, o partido do presidente) está dizendo que
há movimentação de tropas.” Goulart consultou seu chefe do Gabinete
Militar, general Assis Brasil. “O Mourão deslocou as tropas em exercício
militar”, respondeu o general. O presidente então voltou ao telefone.
“Isso é coisa da oposição que quer tumultuar”, disse. Satisfeitos com a
resposta, Virgílio e Affonso tomaram um uísque para comemorar.
Ao longo do dia, as notícias só fariam colocar água na bebida dos
dois políticos. Começava a ficar claro que Mourão (o general Olympio
Mourão Filho) não estava liderando simples jogos militares. Suas tropas
marchavam para o Rio de Janeiro com o objetivo de derrubar o governo.
Nas bancas da cidade – que apesar de não ser mais a capital, continuava
sendo o termômetro das ações políticas do país e sede de seu comando
militar – , o jornal Correio da Manhã dava destaque em sua primeira
página para um editorial intitulado “Basta!” – nenhum brasileiro
precisava de mais informações para saber que o destinatário da mensagem
era o presidente. Entre os autores do texto, os jornalistas Carlos
Heitor Cony e Otto Maria Carpeaux. O poder de João Goulart estava por um
fio.
Entre os oficiais mais importantes do país, crescia as adesões ao
movimento detonado por Mourão. E ninguém, militar ou civil, parecia
seriamente disposto a pegar em armas para defender o regime. No fim da
noite, Goulart mais uma vez foi chamado ao telefone. Era o general
Amaury Kruel, chefe das tropas de São Paulo e Mato Grosso. Ele exigia
que o presidente rompesse com a esquerda. “General, eu não abandono meus
amigos”, respondeu Goulart. “Se essas são as suas convicções, eu não as
examino. Ponha as tropas na rua e traia abertamente”, completou. Kruel
desligou o telefone e aderiu ao levante. O dia seguinte amanheceu com
cinco tanques de guerra protegendo o Palácio das Laranjeiras, com seus
canhões preparados para atirar. Para quem via de fora, era um sinal de
força do governo. Para quem sabia o que estava ocorrendo, representavam
uma das últimas linhas de defesa de Goulart.
O general Kruel havia acabado de evidenciar a falência do poder
militar da presidência. Estava arruinado o “dispositivo” montado por
Assis Brasil, como ficou conhecido o sistema de nomeações e promoções
que colocou aliados do governo nos cargos mais importantes das Forças
Armadas. A idéia era ter as tropas ao lado do presidente em caso de um
levante da direita. Não era o que estava ocorrendo.
Jango, apelido que o presidente carregava desde a infância, perdia
não só apoio militar, mas também o político. Num país cada vez mais
polarizado entre a direita e esquerda, Goulart desagradava os dois
lados. No último mês, no entanto, era acusado de aderir aos ventos que
sopravam do leste europeu. Prometia conduzir as “reformas de base”,
antiga exigência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que incluía a
reforma agrária e o controle das remessas de lucros das multinacionais.
Com isso, perdeu o apoio da classe média e dos empresários. Também
viu-se abandonado pelos militares ao tolerar a revolta da baixa patente,
que colocava em xeque a hierarquia dentro das Forças Armadas.
Aos olhos da oficialidade, Goulart selou seu destino na noite de 30
de março, quando participou de um comício para suboficiais e sargentos
no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. O grupo estava rebelado e
contestava publicamente o comando militar. A presença do presidente num
evento como esse referendava a postura dos revoltosos. Sem economizar no
tom do discurso, Jango foi direto e falou sobre a possibilidade de um
golpe. “Não admitirei o golpe dos reacionários. O golpe que nós
desejamos é o golpe das reformas de base, tão necessárias ao nosso país.
Não queremos o Congresso fechado. Queremos apenas que os congressistas
sejam sensíveis às mínimas reivindicações populares”, disse.
O discurso era música para os conspiradores que preparavam a
derrubada do governo, entre eles peixes graúdos como o chefe do
Estado-Maior das Forças Armadas, marechal Castello Branco, e o
governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto. Não havia mais o que
esperar, até porque, no momento do discurso, o general Mourão havia se
rebelado em Juiz de Fora. Para eles, era preciso retirar urgentemente o
país do caminho da esquerda e protegê-lo do golpe que se armava dentro
do Palácio do Planalto. A cerca de um ano das eleições presidenciais,
eram grandes as evidências de que o grupo de Goulart tramava uma manobra
para garantir mais um mandato ao presidente, o que era proibido pela
Constituição. “Se não dermos o golpe, eles o darão contra nós”, dizia o
então deputado pela Guanabara Leonel Brizola.
Sem poder contar com a direita, a possibilidade de um golpe janguista
minava a simpatia da esquerda. Goulart chegou a abril de 1964 contando
com o apoio de seu partido, o PTB, de aliados como o PCB e pouco mais
que isso. Pior: todos acreditando cegamente que o “dispositivo militar”
garantia a permanência do presidente no poder. Tal crença imobilizou
qualquer possibilidade de reação. Ao saber que uma greve em repúdio ao
golpe militar fora convocada às pressas para o dia 1º, o líder comunista
Luiz Carlos Prestes tentou interceder contra o movimento, argumentando
que o governo tinha força militar para controlar os rebelados.
Não tinha e a greve geral não surtiu efeito. Na Guanabara, por
exemplo, a paralisação dos serviços de transporte inviabilizou a
manifestação de apoio a Goulart marcada para a Cinelândia. Sem ter como
se locomover, apenas 4 mil pessoas enfrentaram a chuva forte que caía
no Rio de Janeiro para ir ao local. Uma tropa do Exército, que a
princípio havia sido recebida com aplausos, tratou de dispersar a
multidão com tiros para o alto.
Greves e manifestações. Era tudo que a oposição ao golpe militar
propunha para enfrentá-lo. Segundo o jornalista Elio Gaspari, no livro A
Ditadura Envergonhada, quando teve uma proposta aberta para pegar em
armas, a esquerda demonstrou falta de disposição para qualquer forma de
combate que não o político. “No fim da tarde do dia 31, o chefe do
Gabinete Civil, Darcy Ribeiro, convocou o deputado Marco Antônio Coelho,
do PCB, para uma conversa no Palácio do Planalto.
Colocou sobre a mesa uma oferta de ceder submetralhadoras para os
comunistas resistirem ao levante militar. Apresentou ainda uma lista de
políticos que deveriam ser executados, incluindo os presidentes do
Supremo Tribunal Federal, do Senado e parlamentares”, escreveu. O PCB
recusou o convite.
Pouco antes do meio-dia, Goulart recebeu, por telefone, o pedido de
demissão do ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro. Era mais um que
aderia aos golpistas. Jango deixou o Rio de Janeiro e voou para
Brasília. “Isso aqui está uma ratoeira”, afirmou para um assessor.
Estava mesmo. Logo após o presidente Goulart deixar a cidade, o I
Exército, que agrupava todas as tropas do Rio de Janeiro, Minas Gerais e
Espírito Santo, aderiu ao levante. A essa altura, as tropas rebeladas
provavelmente já eram mais numerosas e estavam em melhor situação de
combate do que as legalistas. Para isso, elas nem sequer precisaram
participar de uma troca de tiros.
Mourão e Luiz Carlos Guedes, os dois militares que iniciaram o golpe,
já não comandavam mais o movimento. Escondido num apartamento em
Copacabana, o novo líder, marechal Castello Branco, “confiscou” a linha
do vizinho e fez do telefone sua arma de combate. Ganhava praticamente
uma nova adesão para cada chamada. Perto das 18 horas, deixou a
clandestinidade e começou a circular livremente pelo Rio de Janeiro. A
cidade estava dominada. Às 20 horas, ele e o general Arthur da Costa e
Silva encontraram-se no quartel-general para discutir a divisão do butim
de guerra, ou seja, quem comandaria o país dali para frente. Castello
ficaria com a presidência. Costa e Silva, um até então desconhecido,
seria o comandante do Exército. Cargo que, dali para a frente, seria
cada vez mais relevante.
Na capital federal, Jango não encontrou nada que o fizesse acreditar
que poderia continuar no cargo. Com o clima de fim de governo, embarcou
para o Rio Grande do Sul perto das 23 horas. A viagem serviu para o
Congresso Nacional considerá-lo deposto, mesmo que isso significasse
passar por cima da Constituição, que declarava vago o cargo apenas
quando o presidente deixasse o país. Ranieri Mazzilli, presidente do
Congresso e sucessor legal de Jango, foi imediatamente empossado no
Palácio do Planalto. A cerimônia começou enquanto Darcy Ribeiro ainda
estava em seu gabinete e no momento em que o avião que levou Goulart
pousava em Porto Alegre. Era inconstitucional, portanto. Mas isso não
representou problema algum. Os tanques que guardavam o palácio
presidencial pela manhã haviam deixado o local, atravessado o centro do
Rio e estacionado à frente do Palácio Guanabara, dispostos a proteger o
governador Carlos Lacerda, inimigo político de Jango e conspirador de
primeira hora. Lacerda, ao comentar o desfecho do golpe, declarou entre
lágrimas na televisão: “Obrigado, meu Deus, muito obrigado”. O Brasil
estava sob nova direção.
In: http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/golpe-militar-primeiro-abril-433594.shtml
Nenhum comentário:
Postar um comentário