A FIXAÇÃO DOS GERMÂNICOS NO IMPÉRIO ROMANO E A ORGANIZAÇÃO DOS SEUS REINOS NA EUROPA A PARTIR DO SÉCULO V
Por Edilma Oliveira de Sousa
Para
melhor compreendermos a fixação dos germânicos no Império Romano, bem
como a organização dos seus reinos na Europa a partir do século V,
faz-se necessário estabelecermos um plano de estudo que parte das
seguintes questões: Quem são os povos germânicos? De onde vieram? Quais
são as características gerais desses povos? E, finalmente, como se deu a fixação dos germânicos no Império Romano e a organização dos seus reinos?
É
senso comum denominarmos não só os germanos, mas outros grupos que
margearam o Império romano de bárbaros. Como bem destacou Riché.
Para
um habitante do mundo romano, o Bárbaro é um homem que fala uma
linguagem incompreensível e cuja civilização é ainda primitiva. [...]
Todos aqueles que Roma teve de conter sem poder absorvê-los, constituem
os “Bárbaros” e ameaçam mais ou menos o mundo civilizado (RICHÉ, 1992,
p. 13).
Observamos
então, que os romanos adotaram tal concepção, considerando “bárbaros”
aqueles povos que estavam fora das suas fronteiras, estrangeiros não
assimilados, e que tinham uma cultura considerada inferior à romana.
Este sentido pejorativo do termo encontrou eco plenamente no período
renascentista, a partir do século XV, quando surge o conceito de Idade
Média como idade das trevas. Era corrente a idéia de que os “bárbaros”
haviam destruído a civilização greco-romana com toda a sua rudeza e
inferioridade cultural, intelectual, etc.
Mas
quem eram, na verdade, esses “bárbaros”? No século I a.C., o grego
Posidônio publicava um relato de viagem no qual classificava como
germanos o conjunto de povos instalados entre os rios Reno e Vístula, e,
por conseguinte, batizava esta região de Germânia. Riché, considerando
as informações de Tácito, dá-nos conta de que “os germanos que invadem o
Império já não estavam divididos como no século I, em função de
perturbações sociais, guerras entre tribos, múltiplas deslocações que
transformaram o mapa da Germânia”. Dessa forma, o historiador destaca a
divisão dos germânicos em três grupos, conforme estes se apresentavam
nas vésperas das invasões:
No
leste, os godos, vindos do Báltico, na Ucrânia, no século III,
repartem-se em visigodos (godos "sábios"), a oeste do Dnieper, e em
ostrogodos (godos "brilhantes"), a leste do mesmo rio. Há ainda os
gépidos, que descem do Báltico e se instalam sobre a Thiza, não longe
dos vândalos hasdings. Os vândalos silings, por sua vez, ocupam a
Silésia e comprimem os marcomanos na Baviera. Os burgundios,
originários talvez da ilha báltica de Bornholm (borghundarholm),
empurrados pelos gépidos, encaminham-se do Oder em direção ao Reno. No
outro grupo, a oeste, estão os alamanos, congregando diversos povos
(ali mann), que se estabelecem sobre o Main. Os francos absorvem os
sicambrios, chamavos, bructeros, chattos etc. e dividem-se em dois
segmentos: ripuários, sobre a margem do Rena, de Bonn a Colônia, e
sálios, entre o Reno e o Escalda. O último grupo, localizado ao norte,
seria o dos escandinavos, anglos, varnes e jutos. Entre a foz do Elba e
do Weser, instalam-se os saxões e frísios, e, mais a leste, entre o Elba
e o Oder, os lombardos (RICHÉ, 1992, p. 14-15).
No
que se refere à questão de “onde vieram esses povos?”, observamos que a
origem dos germanos é incerta. Alguns estudiosos alemães acreditam que
os germanos sejam indo-europeus vindos da Rússia oriental; outros os
consideram como nórdicos que ocupavam as regiões escandinavas e bálticas
e estavam isolados pela floresta germânica; na Idade do Bronze, estes
povos receberam o aporte de outros povos, dos quais adotaram a língua
indo-européia. A civilização germânica estaria influenciada pelos celtas
e ilírios, e até pelos povos mediterrâneos. Esta hipótese é a mais
aceitável pela historiografia. A última foi formulada por Tácito, que os
vê como autóctones, isto é, como a seres vivos originários do próprio território onde habitam. Foi
a partir da obra do romano Tácito, “Germânia”, publicada no século I,
que pudemos melhor conhecer as características gerais desses grupos:
Creio
que os germanos são naturais da própria terra e que jamais se mesclaram
com a vinda e hospedagem de outros povos; pois, antigamente, todos que
emigravam não iam por terra senão por mar e são raros os navios que de
nosso mundo se aventuram a penetrar no Oceano imenso e, por assim dizer,
oposto ao nosso. Ainda sem o perigo e o horror de um mar desconhecido,
quem abandonaria a Ásia, África ou Itália para dirigir-se a essa
Germânia áspera, de clima duro e de aspecto tão ingrato, não sendo para
seus naturais? (TÁCITO, 1946, p. 9).
Quais
são, então, as características gerais desses povos? Os germanos não
tinham noção de Estado organizado nem de vida urbana, como os romanos.
Eram povos seminômades, cuja base social e política se estruturava nas
comunidades: tribo, clã e família, como sinalizam Riché,
É,
na verdade, no seio da sua tribo que se tem de observar a vida do
Germano, pois é com a família a estrutura social essencial. A tribo,
comunidade de família e da aldeia, é dirigida por uma aristocracia de
nascimento ou de valor, que possui a maior parte da terra. Na base, a
multidão dos homens livres, portadores de armas e que exprimem por
aclamação a sua opinião nas assembléias; depois vem, na classe mais
inferior, os escravos, prisioneiros de guerras ou devedores de
insolventes, ligados à cultura do solo, mas que, sendo resgatados, podem
passar à classe de homens livres. No entanto, não poderão fazer parte
do povo germânico, pois só a ligação com a família dá ao Germano a
possibilidade de ser livre (RICHÉ, 1992, p. 15-16).
.
Eram
sociedades militares por excelência, vivendo da pilhagem e da guerra,
como vemos ao longo dos estudos em Tácito. Dentro das tribos havia um
comitatus, ou seja, um grupo de guerreiros liderados por um chefe mais
velho, sábio e experiente, a quem todos deviam fidelidade absoluta. O
direito era consuetudinário, ou seja, baseava-se nos costumes. A
sociedade era patriarcal, o casamento monogâmico e o adultério
severamente punido. Viviam da agricultura, pecuária, sem propriedade
privada, e sim comunal, distribuída entre as famílias. Esgotada a
produtividade das terras, iam sempre à busca de novos locais para se
instalar. Do ponto de vista político, essas tribos eram dirigidas por
uma Assembléia de Guerreiros. O indivíduo de maior prestígio social
entre os germânicos era o guerreiro, quase sempre o líder do clã.
Os
germânicos desenvolveram a metalurgia para a fabricação de armas e
carros de combate. Sua cultura refletia os hábitos militares e clânicos
das tribos. A religião germânica estava vinculada ao clã – em geral eram
politeístas e cultuavam os seus ancestrais. A literatura, ainda oral,
fundamentalmente canções e poemas, cantava os feitos dos heróis nos
combates. É interessante ressaltar que cada tribo cultuava o seu próprio
herói, real ou mitológico, sempre enaltecido nas festas e rituais. Eles
desconheciam qualquer forma de unidade religiosa e não possuíam
templos: normalmente, os ritos se realizavam ao ar livre, nos bosques,
nas florestas e nos montes.
Quanto
à questão primordial deste trabalho, “como se deu a fixação dos
germânicos no Império Romano?”, estudos apontam que os primeiros
contatos entre romanos e germanos se deram ainda no século I a.C, nas
fronteiras do Império, por meio de pequenas incursões isoladas: por
falta de terras, obrigações rituais de jovens que tinham de buscar
fortuna fora dos seus limites territoriais. Muitos desses povos migraram
para o Império Romano e chegaram a ser utilizados no exército como
mercenários.
Quando
Roma finalizou seu processo de conquista no século I, a prioridade do
Império foi organizar e defender as fronteiras, ou limes, construindo
pequenos fortes em intervalos regulares. Atrás das fortalezas, nos
acampamentos dos soldados, alguns grupos começaram a levar produtos para
serem trocados: âmbar, trigo, peles etc. É também neste momento, em que
Roma parte para uma política defensiva, que os germanos começam a
penetrar nas legiões romanas: num primeiro momento, recrutados nas
fronteiras, em pequeno número e por certo período de tempo; depois por
intermédio de tratados estabelecidos com os chefes, com um caráter
permanente; e por fim a entrada nas tropas se generalizou, chegando
alguns a ocupar altos postos no exército romano.
A
partir do século III e no IV, já em meio à crise, a política de defesa
do território romano complicou-se bastante, ficando as fronteiras bem
vulneráveis. Os povos germanos foram gradativamente atraídos pela
disponibilidade de terras férteis e pelo clima ameno das possessões
romanas. A entrada dos bárbaros germânicos em Roma nessa fase é
denominada por alguns autores de “pacífica”, visto que foi motivada pela
procura, por parte dos germânicos, de terras agricultáveis e
oportunidades econômicas no interior do próspero Império. Aos poucos,
essas migrações foram sendo absorvidas e, até mesmo, nos exércitos e
legiões de Roma havia soldados e oficiais germânicos – nessa fase os
germanos passaram a ser tratados como povos aliados ou federados, e, sua
duração chega até o século IV.
A
principio, conforme as circunstâncias e os homens, dispunham-se a
acolher os povos que se apinhavam à porta, e mediante o estatuto de
federados, respeitavam-lhe as leis, os costumes e a originalidade; desse
modo lhes moderavam a agressividade e faziam deles, em seu proveito,
soldados e camponeses – minorando a crise de mão-de-obra militar e rural
LE GOFF, 1995, p. 31).
Ocorreria,
no entanto, uma segunda fase. Paralelamente, essas populações também
sofriam com a pressão militar exercida pelos hunos, habilidosos
guerreiros mongóis que forçavam a entrada dos germânicos no Império
Romano, como mostra Le Goff.
Os
invasores eram fugitivos pressionados por outros, mais fortes ou mais
cruéis que eles. A sua crueldade era muitas vezes a crueldade do
desespero, em especial quando os Romanos lhes recusavam o abrigo que
eles tantas vezes pacificamente lhes pediam (LE GOFF, 1995, p. 31).
O
aparecimento dos hunos na planície russa exerceu uma forte pressão
sobre os germanos, fazendo-os penetrar em massa no Ocidente. Vindos da
Mongólia, os hunos eram nômades, vivendo da caça, pastoreio e pilhagem.
Grandes cavaleiros, guerreiros por excelência, tinham um estágio
civilizatório mínimo, quase neolítico, sendo sua maneira de viver
chocante para o Império.
Roma,
preocupada com essa maciça presença germânica, tentou barrá-la.
Contudo, já decadente pela crise interna, não teve condições de fazê-lo.
Em 378, na Batalha de Andrinopla, tem início à invasão germânica
propriamente dita, denominada por Espinosa de “A Primeira Vaga
Invasora”.
Quando,
no fim do século IV, nas regiões do Mar Negro, os Hunos se precipitaram
sobre os godos, desencadeou-se a primeira grande invasão, a qual lançou
sobre o Império Romano, ainda intacto, uma avalanche de povos de raças e
proveniências variadas (ESPINOSA, 1941, p. 4).
Enquanto
o Império estava ocupado em defender-se dos visigodos, uma série de
ondas invasoras se iniciava no norte, o que acabaria resultando na queda
do Império Romano Ocidente. De acordo com os registros de Espinosa,
vagas e vagas bárbaras assolaram o Império Romano do Ocidente. Em 410,
Roma foi pela primeira vez saqueada por povos germanos, os Visigodos,
chefiados por Alarico, que promoveu uma serie de campanhas militares
para conquistar a Península Itálica, logo em seguida os visigodos
tomaram a península Ibérica e a região sul da Gália. Em 446, as tribos
germânicas dos vândalos, alamanos e suevos, também adentraram o
combalido território romano sem que houvesse nenhuma resistência. Os
vândalos conquistaram o norte da áfrica, sob o comando Genserico. Os
francos conquistaram a porção norte da Gália, Jutos, anglos e saxões
promoveram em conjunto a conquista da ilha da Bretanha.
Em
se tratando da última questão central deste trabalho, “como se deu a
organização dos reinos germânicos no Império Romano?”, percebemos que
estes surgiram com a desintegração do Império Romano do Ocidente e não
tiveram a mesma importância nem a mesma duração.
Conforme nos apontam os estudos em Riché, no Reino
dos Vândalos, povo que atravessou a Europa e se fixou no norte da
África, houve perseguição aos cristãos, cujo resultado foi a migração em
massa para outros reinos, provocando falta de trabalhadores, e uma
diminuição da produção. Enquanto que no Reino dos Ostrogodos, localizado
na península Itálica, os povos se esforçaram para salvaguardar o
patrimônio artístico-cultural de Roma. Restauraram vários monumentos,
para manter viva a memória romana. Conservaram a organização
político-administrativa imperial, o Senado, os funcionários públicos
romanos e os militares godos. Estes dois reinos, afirma Riché, “têm como
características comuns a religião ariana dos príncipes e dos seus
povos, a recusa da fusão social e a conservação das instituições
antigas.”
O
Reino dos Visigodos, situado na península ibérica, era o mais antigo e
extenso. Eles ocupavam estrategicamente a ligação entre o Mar
Mediterrâneo e o oceano Atlântico, que lhes permitia a supremacia
comercial entre a Europa continental e insular. A fusão das duas
sociedades, que se opera em meados do século VI, vai permitir a
organização de um estado que só a invasão árabe do século VIII destruirá
em parte.
Reino dos Anglo-Saxões surgiu em 571, quando os saxões venceram os bretões e consolidaram-se na região da Bretanha. Esses povos desenvolveram
uma série de dialetos que, de acordo com a preponderância ou a sujeição
dos reinos onde eram falados, influenciaram com maior ou menor força a
criação de um idioma comum.
O Reino dos Francos
foi o único que conseguiu se estruturar e expandir seus domínios, dos
demais reinos germânicos que estava em processo de invasão do Império
Romano. Eles ocuparam o norte da Gália. Na formação e expansão do Reino
Franco influenciou soberanos de duas dinastias: merovíngia e carolíngia.
Assim, observamos que, em
sua maioria, os Reinos foram efêmeros, não possuindo organização
administrativa eficiente, apesar do empenho de muitos chefes germanos em
manter as instituições político-administrativas romanas. O
funcionamento dessas instituições, contudo, nem sempre correspondeu às
novas realidades e, por vezes, os elementos de populações romanizadas se
recusaram a colaborar com os germanos: durante muito tempo foram vistos
como conquistadores que se haviam imposto pela força das armas.
A
língua, a religião, os costumes e, sobretudo, as instituições
político-jurídicas e sociais dos germanos, bem diferentes dos das
populações submetidas, funcionaram como obstáculos à fusão entre as duas
sociedades: a romana e a germânica. Ainda que os chefes bárbaros
procurassem evitar choque entre romanos e germanos surgiram inúmeros
problemas, inclusive pela criação de novos obstáculos à fusão, como a
adoção do regime da personalidade das leis, segundo o qual cada
indivíduo seria julgado pelas leis de seus ancestrais.
A
instabilidade e a curta duração de muitos desses Reinos também se
ligaram ao fato de os germanos desconhecerem a noção de Estado. A
própria concepção que tinham da Monarquia em nada contribuiu para a
consolidação dos Reinos. Concebiam-na como "uma Realeza absoluta apoiada
na força militar. Os Reis do povo franco, godo, vândalo etc, não tinham
nenhuma idéia de um Estado cuja responsabilidade lhes cabia. Eram
proprietários de suas conquistas e as partilhavam entre seus sucessores,
em geral seus filhos. A idéia de explorar metodicamente suas riquezas
igualmente lhes escapava: viviam em um domínio até o esgotamento das
reservas, depois procuravam outros recursos. Sua Corte era integrada
pelos fiéis e parentes. A organização familiar permaneceu idêntica após
as invasões: compra da esposa, direito paterno de justiça, solidariedade
familiar, divórcio excepcionalmente, mas concubinato muito comum, pelo
menos entre os Reis.
Finalmente
chegamos a um raciocínio mínimo que nos permita compreender que à
medida que penetravam na Europa, os bárbaros fundaram diversos reinos,
processo conhecido como invasões bárbaras, que foram responsáveis
diretas por um intenso intercâmbio cultural que modificou profundamente a
formação étnica, política, econômica, lingüística e religiosa do mundo
ocidental. Do mesmo modo, nos permitiu perceber, em vários momentos da
historia, que as noções de civilizado e de bárbaro estão envoltas de
preconceitos e não só refletem uma visão maniqueísta da sociedade como
possuem uma função ideológica, que reforça o discurso dominante.
REFERENCIAS
ESPINOSA, F. Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Editora Sá da Costa, 1981. Cap. I.
LE GOFF, J. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, v. 1, 1984. p .27-63.
RICHÉ, Pierre. As invasões bárbaras. Mem Martins: Europa-América, 1992.
TÁCITO. Germânia (98 d.C.). Trad. e notas de Sadi Garibaldi. Rio de Janeiro: Editora Livraria Para Todos, 1943. Essa tradução foi confrontada com CAYO CORNELIO TÁCITO. Obras completas (traducción, introducción y notas. Obra publicada bajo la dirección de VICENTE BLANCO Y GARCÍA). Madrid: M. Aguilar Editor, 1946, p. 1011-1044. Disponível em www.ricardocosta.com
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