Um visitante de uma cidade do norte chegou a Esparta em 480 a.C. Foi
bem recebido e experimentou a melas zomos, prato típico e orgulho da
cidade-estado: uma sopa à base de porco, vinagre, sal e (muito) sangue
suíno. Depois de provar a iguaria, sua conclusão foi rápida: "Agora
entendo o motivo de os espartanos estarem sempre tão preparados para
morrer". A anedota sobre a sopa sangrenta resume bem a vida da cidade.
Os homoioi, os cidadãos espartanos, cresciam comendo mal e viviam com
fome, enfrentavam-se entre si e suportavam um treinamento militar tão
intenso que até soldados do Bope pediriam para sair na primeira semana.
Os filhos da elite da cidade tinham vida dura desde o berço. Isso se o
bebê sobrevivesse ao parecer do conselho dos anciãos - há referências
textuais em Xenofonte e Plutarco de que bebês fora dos padrões da cidade
eram mortos, arremessados ou abandonados, no monte Taigeto. "O
infanticídio era comum na Grécia antiga, mas Esparta era a única a
praticá-lo colocando a decisão nas mãos do Estado, e não na dos pais",
afirma Paul Cartledge, autor de Spartans (sem edição em português) e
professor de cultura grega na Universidade de Cambridge. "A palavra
final era do conselho dos anciãos: eles é que decidiam se a criança
estava apta a continuar viva ou teria de ser morta."
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A
prática do infanticídio era apenas o início da educação espartana, a
agoge, focada no militarismo, na disciplina e na obediência completa.
Depois de passar os primeiros 7 anos de vida com a família, os meninos
eram enviados para centros de treinamento para serem educados e
transformados em guerreiros. Até os 11 anos, o jovem espartano passava
pelo primeiro ciclo, a meninice, em que recebia o treinamento militar
básico.
O menino estava ali para aprender a manejar lanças,
espadas e escudos, além de praticar esportes como corrida e natação. A
alfabetização não era, de acordo com Plutarco, o mais importante. O foco
era a obediência - não ler e escrever. "Eles aprendiam as letras quanto
fosse necessário: todo o restante do treinamento era direcionado para
resposta rápida aos comandos, resistência, força e vitória nas
batalhas", escreveu Plutarco na sua obra sobre a vida de Licurgo, o
principal legislador espartano.
No dia a dia, a educação era
supervisionada por um magistrado responsável, mas a disciplina (e as
punições) era imposta pelos colegas mais velhos. Sessões de açoites eram
comuns, assim como humilhações públicas. Quem já passou por uma escola
sabe bem que esse modelo tem o potencial de incentivar a crueldade dos
mais velhos contra os mais novos. Mas o uso da crueldade do grupo não
era algo inesperado. "A ideia básica era deixar os meninos duros,
resistentes, no melhor de sua forma física. Acima de tudo, eles tinham
que ser autossuficientes e capazes de suportar a dor", afirma Cartledge.
Entre
os 12 e os 15 anos, o rapaz passava pelo segundo estágio da agoge.
Nessa fase, além dos exercícios tradicionais, havia maior foco no
trabalho em grupo, além da maestria no uso das armas. Corridas com
cavalos e com bigas também começavam a acontecer. Era definido um
mestre, um homem mais velho que acompanhava individualmente os avanços
do protegido - tanto militares quanto pessoais. Há discussão acadêmica
sobre isso, mas é grande a probabilidade de que a educação entre
discípulo e mestre envolvesse relações homoeróticas - traço comum nas
cidades-estado gregas.
É durante o segundo ciclo que os meninos
recebiam apenas um pedaço de pano para usar como túnica, a única roupa
que podiam vestir durante o ano em uma região em que a temperatura chega
aos 40 ºC no verão e -5 ºC no inverno. A restrição de comida também era
parte do treinamento. Os jovens soldados recebiam apenas o necessário
para sobreviver (inclusive da melas zomos) - quantidade que não chegava
nem perto da saciedade. Constantemente com fome, os jovens só tinham uma
solução: roubar comida. Para os espartanos, não havia problema algum em
furtar alimentos - o problema estava em ser pego.
Outro caso
contado por Plutarco ajuda a ilustrar a fome e a obediência cega dos
aprendizes de soldado. O historiador conta que um jovem conseguiu
apanhar um pequeno lobo selvagem para comê-lo. Ao ser descoberto,
manteve o lobo sob a sua capa enquanto ouvia o sermão do supervisor.
"Sem demonstrar dor, o menino ficou ouvindo o sermão enquanto o lobo o
atacava embaixo da capa", afirma Maria Aparecida de Oliveira Silva,
professora de história antiga na USP e autora do livro Plutarco
Historiador: Análise das Biografias Espartanas. De acordo com Plutarco, o
jovem suportou o ataque, até que morreu. Mais do que revelar algo
factual, ressalta Maria Aparecida, esse tipo de história era fundamental
para provar como se comportava um verdadeiro espartano. "Tais episódios
eram contados para ilustrar a coragem dos espartanos, bem como a
obediência cega aos seus costumes e às suas leis."
A partir dos
16 anos, começava a fase final da preparação, que ia até os 20. Era
nesse momento que o treinamento passava a ser prático. Os hoplitas -
guerreiros com grandes escudos redondos, lanças longas sobre o ombro
direito e espada embainhada - eram unidos em grupos de até 15 para
exercícios de guerra. Cada grupo era chamado de falange. Nas batalhas,
as falanges se enfrentavam até que um soldado cedesse e as mortes
começassem a acontecer aos borbotões. Além da força física e da
resistência, era necessário muita confiança no seu parceiro ao lado - se
ele correr ou cair, a lança rival aproveita o espaço e você está morto.
É
por isso que um ditado comum sobre as falanges é que elas são tão
fortes quanto o seu elo mais fraco. O treinamento espartano desde o
início enfatiza isso - a falange deveria ser uma entidade única.
E
isso justificava o treinamento rígido. Durante toda agoge, o papel do
Estado espartano era gigantesco. Não se tratava apenas de deixar o filho
na escola todas as manhãs e ele crescer até cursar uma universidade,
mas a entrega completa do futuro cidadão à Esparta. E só havia um
caminho possível: ser soldado. "Aos 7 anos, a criança era realmente
doada ao Estado para a educação e, a partir dos 18 anos, começar a ter
papel na vida da cidade. Basicamente, o objetivo final da agoge era
incutir a ideia de que para viver em Esparta era preciso deixar de lado
prazeres e interesses individuais", afirma José Francisco de Moura,
historiador especializado em Esparta e professor de história na
Universidade Veiga de Almeida.
Não há muitas evidências
arqueológicas sobre a educação feminina, mas os textos clássicos indicam
que as meninas recebiam algum treinamento, cujo foco estava na
excelência física. Em resumo, as espartanas eram vistas como parideiras -
as futuras mães dos guerreiros. "Como resultado da ênfase na
reprodução, as meninas eram criadas para serem o tipo de mãe que Esparta
necessitava. Uma mãe precisa ser saudável, educada de maneira
apropriada e com bastante conhecimento dos valores espartanos", escreveu
Sarah B. Pomeroy em Spartan Women (sem edição em português). "Apenas
mulheres que morriam durante o parto podiam ter seu nome escrito na
lápide, o que acontecia somente com os homens que morriam em batalha."
Na prática, o que as evidências arqueológicas dão conta é que as
mulheres espartanas estavam em forma - as estátuas mostram músculos
definidos nos braços e nas coxas. Além disso, tinham fama de serem
lindas: Helena, a mulher mais bela do mundo antigo, antes de ser de
Troia e de virar a cabeça de Páris, era Helena de Esparta.
O
casamento era uma instituição completamente diferente entre os
espartanos. Feito por arranjos entre as famílias dos homoioi, a união
não envolvia uma vida em conjunto entre marido e mulher. Ao contrário, o
homem devia visitá-la apenas durante a noite para o ato sexual e voltar
para a sua falange. Por isso, não era raro um homem de 30 anos jamais
ter visto a sua mulher à luz do dia. Afinal, ele só tinha permissão de
começar a morar com a esposa a partir dos 30 anos. A cerimônia era,
evidentemente, espartana. A mulher tinha os seus cabelos cortados
curtos, como os de um homem, e recebia uma toga masculina. Era nessa
noite que o marido iria invadir a casa da esposa pela primeira vez para
consumar o casamento. E voltar ao grupo assim que acabasse.
Admirada
por priorizar o público sobre o privado, Esparta foi a inspiração de
uma série de obras-primas, como a República de Platão, e até de crimes
contra a humanidade - a eugenia, popular no começo do século 20, usava o
exemplo espartano como base. Longe da idealização clássica ou moderna,
os poucos artefatos recuperados e as escassas referências textuais
ajudam a compor um retrato de uma cidade na qual a vida não era nada
fácil - e onde a mão do Estado entrava nos lares em busca de crianças
que seriam transformadas em guerreiros.
Guerra perpétuaEsparta
vivia em permanente estado de sítio. Surgida como um pequeno conjunto
de aldeias em torno do século 10 a.C., Esparta se desenvolveu
agressivamente nos dois séculos seguintes para se tornar a maior
cidade-estado grega em território. A base da sua expansão estava na
aquisição de terras, de cidadãos livres para pagamento de taxas e de
escravos, chamados hilotas - prisioneiros de guerra de outras regiões,
que eram obrigados a realizar o trabalho braçal.
Apesar de a
escravidão ser um traço comum em praticamente todas as comunidades
gregas daquele período, os espartanos foram além. Descartaram a tradição
quando, diferentemente dos rivais, como Atenas e Argos, passaram a
escravizar os seus próprios vizinhos gregos. Os primeiros a cair foram
os messênios, que tinham a mesma etnia dórica dos espartanos.
Estimativas dão conta de que havia de 10 a 20 vezes mais messênios e
cidadãos livres do que cidadãos espartanos na cidade, por volta de 500
a.C.